segunda-feira, 25 de maio de 2009
momentos de vida
Momentos da vida com um filho deficiente
O Tiago é um jovem com vinte e cinco anos, mas sem autonomia. Dependente dos cuidados dos pais na alimentação, na higiene, em tudo. Sofre de epilepsia mas controlada por medicação.
Tem uma motricidade razoável. Anda na rua e faz quilómetros, sobe escadas, mas apoiado. O que já é uma grande vantagem.
Tem algum sentido de orientação, retém em memória e conhece os espaços por onde passa.
Não fala. Utiliza com sentido umas dez palavras. Compreende ordens simples.
A gravidez foi difícil. Teve um parto por cesariana. Na Maternidade Júlio Dinis, no Porto, recebeu todos os cuidados que lhe deram a vida. Nasceu com peso reduzido, 1.757 gramas com gestação de nove meses. Foi reanimado, estava em sofrimento, em situação de hipoglicemia e com taquicardia.
Permaneceu na incubadora aproximadamente dois meses.
Fez vários cariótipos para indagar eventuais síndromas ou outras anormalidades. Nada foi registado que explique a deficiência.
Teve uma evolução lenta. Ultrapassou fases de idade com o espanto dos médicos que o conheciam.
Ninguém quer ser deficiente e nenhum pai quer ter um filho deficiente. Calhou a nós, poderia ter sido a outros. Coube-nos a nós e nós não rejeitamos esta criança. Não levamos o nosso filho deficiente ao caixote do lixo nem o abandonamos na valeta. É parte de nós.
O nosso filho depende de nós, pais, por toda a vida. Já temos muitos anos sem descanso, muitas canseiras, muitas noites sem dormir, sem férias e sem as alegrias que os filhos dão aos pais quando acabam seus cursos, quando começam a trabalhar e a ganhar a vida por conta deles.
Foi aceite, mas durante os primeiros anos tínhamos uma vaga consciência da sua deficiência. Começámos a notar que era diferente das crianças da sua idade. Mostrava diferenças no modo como aceitava os alimentos, como se mexia, como reagia aos carinhos. Mas os nossos olhos só notavam, na criança, pequenos atrasos recuperáveis.
Andámos por médicos à procura de explicações. Sempre na expectativa e confiantes da sua normalidade.
Com o avançar da idade, as diferenças tornaram-se bem visíveis e indisfarçáveis. Cada vez mais diferente das crianças da sua idade.
Começámo-nos, então, a convencer que tínhamos um filho deficiente. No início, só víamos pequenas deficiências. Aos poucos e durante anos começámos a aceitar as grandes diferenças que fazem a deficiência profunda. Se a descoberta fosse num único instante, não havia força que aceitasse e resistisse.
Marcou-nos e ficou como recordação pesada a informação de uma médica neuropediatra, que depois de demorada consulta e com espanto pelas habilidades da criança que não tinha força para segurar a cabeça, mas desenroscava tapos de frascos, mostrando motricidade coordenada entre as duas mãos, que à pergunta ansiosa de pais quanto ao futuro daquela fragilidade, respondeu que aquele menino seria sempre carente dos cuidados de outros pessoas, sempre dependente.
A informação da médica cortou e fez ruir esperanças de ver uma criança traquina, capaz de saltar muros para ir aos ninhos.
O Tiago é um deficiente mental profundo. Agora estamos conscientes que o Tiago é um jovem, uma criança sem autonomia e totalmente dependente dos cuidados de outras pessoas. Com vinte e cinco anos de idade, mas com mentalidade de uma criança de uns três anos enriquecidos por experiências diversificadas.
É uma criancinha. Cercamo-lo de protecções, de carinhos, de vigilâncias, algumas talvez desnecessárias. De estatura pequena, enche a casa, é a nossa companhia. Desgasta-nos pelos trabalhos que nos dá. Não nos deixa ter férias. Tira-nos os fins-de-semana. Não viajamos como fazíamos na nossa juventude. Não nos deixa ir aos convívios com amigos, colegas ou família. Dependemos do bem-estar da criança indefesa tanto como ele de nós depende.
Achamos graça às pequenas espertezas da criança, como o esconder de um brinquedo, uma teimosia, uma birra.
Levamos com o humor possível a aceitação social da deficiência, mas também com resignação, alguma frustração e muitos sacrifícios. Pai de cabelos brancos, entrei numa fila de mancebos que faziam macacadas no tempo de espera para fazer a matrícula para o exército. Entre as brincadeiras dos mancebos que me rodeavam, imaginava-me numa fila a levar o Tiago pela mão ou ao colo para passar pela inspecção militar. Sorria no meu interior trespassado por incertezas quanto ao futuro. A compreensão das chefias no Quartel General pouparam-me da inspecção ou de o considerarem refractário desde que apresentasse uma declaração de incapacidade, passada por uma junta médica.
O futuro é incerto. O futuro angustia. Nós, pais, envelhecemos e estas crianças, jovens deficientes mentais, estão na vida dependentes de cuidados. Na impossibilidade dos pais, fica-nos a incerteza de quem os acolherá com respeito e carinho.
Desejamos e precisamos, para as crianças e para nós, de instituições sensibilizadas e preparadas para darem os cuidados que os pais dão.
Precisamos de instituições que os ocupem durante o dia, com técnicos que façam as terapias de relaxe, de manutenção das aprendizagens possíveis e úteis para estes jovens, com professores preparados para ministrar ensino a adultos carenciados de apoios especiais e que continuem o trabalho de escolaridade sem os limites da idade escolar.
Precisamos que o Estado assuma as suas obrigações, garantindo os meios financeiros para que estes jovens sejam respeitados no direito à vida, à saúde, ao ensino, a uma pensão digna e suficiente ao bem-estar e à alegria. A pensão social que recebem não é suficiente.
Os pais de crianças deficientes têm consciência que estas crianças poderiam andar ao colo de outros pais. Coube-nos a nós.
Precisamos de solidariedade, de apoio e de respeito pelos direitos que também nós temos a uma vida com alguma segurança e descanso.
Manuel Miranda
O Tiago é um jovem com vinte e cinco anos, mas sem autonomia. Dependente dos cuidados dos pais na alimentação, na higiene, em tudo. Sofre de epilepsia mas controlada por medicação.
Tem uma motricidade razoável. Anda na rua e faz quilómetros, sobe escadas, mas apoiado. O que já é uma grande vantagem.
Tem algum sentido de orientação, retém em memória e conhece os espaços por onde passa.
Não fala. Utiliza com sentido umas dez palavras. Compreende ordens simples.
A gravidez foi difícil. Teve um parto por cesariana. Na Maternidade Júlio Dinis, no Porto, recebeu todos os cuidados que lhe deram a vida. Nasceu com peso reduzido, 1.757 gramas com gestação de nove meses. Foi reanimado, estava em sofrimento, em situação de hipoglicemia e com taquicardia.
Permaneceu na incubadora aproximadamente dois meses.
Fez vários cariótipos para indagar eventuais síndromas ou outras anormalidades. Nada foi registado que explique a deficiência.
Teve uma evolução lenta. Ultrapassou fases de idade com o espanto dos médicos que o conheciam.
Ninguém quer ser deficiente e nenhum pai quer ter um filho deficiente. Calhou a nós, poderia ter sido a outros. Coube-nos a nós e nós não rejeitamos esta criança. Não levamos o nosso filho deficiente ao caixote do lixo nem o abandonamos na valeta. É parte de nós.
O nosso filho depende de nós, pais, por toda a vida. Já temos muitos anos sem descanso, muitas canseiras, muitas noites sem dormir, sem férias e sem as alegrias que os filhos dão aos pais quando acabam seus cursos, quando começam a trabalhar e a ganhar a vida por conta deles.
Foi aceite, mas durante os primeiros anos tínhamos uma vaga consciência da sua deficiência. Começámos a notar que era diferente das crianças da sua idade. Mostrava diferenças no modo como aceitava os alimentos, como se mexia, como reagia aos carinhos. Mas os nossos olhos só notavam, na criança, pequenos atrasos recuperáveis.
Andámos por médicos à procura de explicações. Sempre na expectativa e confiantes da sua normalidade.
Com o avançar da idade, as diferenças tornaram-se bem visíveis e indisfarçáveis. Cada vez mais diferente das crianças da sua idade.
Começámo-nos, então, a convencer que tínhamos um filho deficiente. No início, só víamos pequenas deficiências. Aos poucos e durante anos começámos a aceitar as grandes diferenças que fazem a deficiência profunda. Se a descoberta fosse num único instante, não havia força que aceitasse e resistisse.
Marcou-nos e ficou como recordação pesada a informação de uma médica neuropediatra, que depois de demorada consulta e com espanto pelas habilidades da criança que não tinha força para segurar a cabeça, mas desenroscava tapos de frascos, mostrando motricidade coordenada entre as duas mãos, que à pergunta ansiosa de pais quanto ao futuro daquela fragilidade, respondeu que aquele menino seria sempre carente dos cuidados de outros pessoas, sempre dependente.
A informação da médica cortou e fez ruir esperanças de ver uma criança traquina, capaz de saltar muros para ir aos ninhos.
O Tiago é um deficiente mental profundo. Agora estamos conscientes que o Tiago é um jovem, uma criança sem autonomia e totalmente dependente dos cuidados de outras pessoas. Com vinte e cinco anos de idade, mas com mentalidade de uma criança de uns três anos enriquecidos por experiências diversificadas.
É uma criancinha. Cercamo-lo de protecções, de carinhos, de vigilâncias, algumas talvez desnecessárias. De estatura pequena, enche a casa, é a nossa companhia. Desgasta-nos pelos trabalhos que nos dá. Não nos deixa ter férias. Tira-nos os fins-de-semana. Não viajamos como fazíamos na nossa juventude. Não nos deixa ir aos convívios com amigos, colegas ou família. Dependemos do bem-estar da criança indefesa tanto como ele de nós depende.
Achamos graça às pequenas espertezas da criança, como o esconder de um brinquedo, uma teimosia, uma birra.
Levamos com o humor possível a aceitação social da deficiência, mas também com resignação, alguma frustração e muitos sacrifícios. Pai de cabelos brancos, entrei numa fila de mancebos que faziam macacadas no tempo de espera para fazer a matrícula para o exército. Entre as brincadeiras dos mancebos que me rodeavam, imaginava-me numa fila a levar o Tiago pela mão ou ao colo para passar pela inspecção militar. Sorria no meu interior trespassado por incertezas quanto ao futuro. A compreensão das chefias no Quartel General pouparam-me da inspecção ou de o considerarem refractário desde que apresentasse uma declaração de incapacidade, passada por uma junta médica.
O futuro é incerto. O futuro angustia. Nós, pais, envelhecemos e estas crianças, jovens deficientes mentais, estão na vida dependentes de cuidados. Na impossibilidade dos pais, fica-nos a incerteza de quem os acolherá com respeito e carinho.
Desejamos e precisamos, para as crianças e para nós, de instituições sensibilizadas e preparadas para darem os cuidados que os pais dão.
Precisamos de instituições que os ocupem durante o dia, com técnicos que façam as terapias de relaxe, de manutenção das aprendizagens possíveis e úteis para estes jovens, com professores preparados para ministrar ensino a adultos carenciados de apoios especiais e que continuem o trabalho de escolaridade sem os limites da idade escolar.
Precisamos que o Estado assuma as suas obrigações, garantindo os meios financeiros para que estes jovens sejam respeitados no direito à vida, à saúde, ao ensino, a uma pensão digna e suficiente ao bem-estar e à alegria. A pensão social que recebem não é suficiente.
Os pais de crianças deficientes têm consciência que estas crianças poderiam andar ao colo de outros pais. Coube-nos a nós.
Precisamos de solidariedade, de apoio e de respeito pelos direitos que também nós temos a uma vida com alguma segurança e descanso.
Manuel Miranda
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